Senhor Libertadores

Retranqueiro, arrogante, chato, mala, burro. Abel Ferreira ouviu tudo isso e mais um pouco em 2021, seja por parte de personagens da imprensa, de torcedores rivais ou da própria torcida do Palmeiras. E isso mesmo após conquistar os títulos da Libertadores em janeiro e da Copa do Brasil em fevereiro – apesar de falhar nas disputas da Recopa Sul-Americana, da Supercopa do Brasil e no Mundial de Clubes, a menina dos olhos do torcedor palestrino.

É bem verdade que o treinador português por vezes monta seus times com um futebol pragmático, que sofre mais do que deveria e tem seus tropeços. Também é fato que suas entrevistas e reclamações à beira do gramado possam render o título de “chato” para jornalistas e rivais. Mas a figura de Abel reúne duas características primordiais para o sucesso de alguém em sua profissão, mais importantes do que qualquer outra: é estrategista e motivador.

Nesse pouco mais de um ano no comando do Palmeiras, Abel Ferreira marcou definitivamente seu nome na história do clube e do futebol sul-americano, afinal, foram dois títulos no mais importante torneio do continente em menos de 10 meses – a final da Libertadores de 2020 foi disputada em janeiro de 2021. A receita para o sucesso do treinador no Palmeiras tem muito a ver com a rapidez com que Abel conseguiu conhecer as características do elenco a disposição, e extrair o melhor dos jogadores em diferentes funções dependendo do jogo, oferecendo a equipe muitas variações táticas, outra de suas maiores virtudes.

Na semifinal de 2020, contra o River Plate, por exemplo, montou uma linha de cinco atrás, com Gabriel Menino, ora de ala, ora de meia, explorando a deficiência dos argentinos na lateral-esquerda e acabando com o jogo. Na mesma fase, mas neste ano, contra o Atlético-MG, a estrela de Abel brilhou mais uma vez. Em um Mineirão lotado, Abel montou mais uma vez uma linha de cinco, dessa vez com o uruguaio Piquerez assumindo o protagonismo atrás impedindo os ataques do Galo, e com Gabriel Verón fazendo a jogada do gol palmeirense que daria a vaga na final um minuto após ser lançado pelo treinador em campo.

Nas duas situações, o discurso motivador do técnico também chamou a atenção. Contra o River, a preleção que viralizou com Abel pedindo coragem e disciplina aos jogadores, com a frase “cabeça fria, coração quente”, a qual muitos atribuem nas profundezas da internet ter sido proferida pela primeira vez pelo antigo Secretário Geral da União Soviética, Joseph Stalin. Neste ano, em ambiente completamente adverso contra o Atlético, o pedido de calma e a conversa com os jogadores após o gol sofrido, que na hora tranquilizaram muitos torcedores do Palmeiras. Segundo amigos palestrinos meus, Abel tinha um plano, como sempre tem.

Sintonia com os jogadores

Em Montevidéu não foi diferente. Abel montou o time ideal para parar o Flamengo, contando com uma grande partida dos seus jogadores, que assimilam bem suas funções consoante as ideias do treinador. Contou com uma defesa liderada por Weverton, o melhor goleiro do Brasil, com Gómez e Mayke em tarde inspirada, na qual arquitetaram o primeiro gol, e com a solidez de Luan e Piquerez.

No meio-campo, a frieza do jovem Danilo, que parece sempre saber o que fazer com a bola: passes simples com sua perna esquerda, mas que muitas vezes quebraram a linha de marcação flamenguista, dando espaço para o contra-ataque alviverde, arma forte do palestra. Isso porque a transição é sempre muito bem-feita, com o motorzinho Zé Rafael e com o elemento surpresa – que de surpresa não tem nada pelas últimas grandes temporadas de alto nível – Raphael Veiga, autor do primeiro gol do certame.

No ataque, Scarpa encaixou o lado direito palmeirense e depois acabou a partida como lateral-esquerdo, comprovando sua qualidade e polivalência e, mais uma vez, a capacidade de permitir reinvenções por parte de Abel Ferreira. As flechas palmeirenses também se destacaram na finalíssima: Rony com sua habilidade de aliar força e velocidade, dando trabalho para toda defesa rubro-negra. E Dudu, alguns anos atrás como um legítimo ponta-esquerda, e agora com o papel de “todo-campista-atacante”, se deslocando por toda parte do terceiro terço palmeirense.

O estilo reativo de Abel pode não ter um futebol brilhante, mas tem sua quase perfeição nesses detalhes, que formaram um time copeiro e vencedor, que cresce nas horas decisivas. Até mesmo nas trocas do treinador, com Gabriel Menino e Patrick de Paula sempre jogando como gente grande, Felipe Melo, esse sim veterano, cumprindo o papel de afastar as bolas altas e picar o jogo com falatório e um cartão, e claro: a estrela de Deyverson. Quis o destino que Andreas Pereira errasse aquela saída de jogo, e o outrora anti-herói centroavante alviverde, se transformasse em protagonista para marcar o gol do título da Libertadores, o terceiro do Palmeiras, o segundo de Abel.

Deyverson ainda foi personagem de mais um lance inacreditável ao simular uma agressão do árbitro Néstor Pitana nos últimos segundos da prorrogação, cena que deixou até o próprio experientíssimo assoprador de apito desnorteado, e ajudou o Verdão a queimar ainda mais preciosos segundos: boleiros copeiros esses do palestra.

O casamento entre o Palmeiras e Abel Ferreira é perfeito. Os dois se agigantaram no período do treinador português no Brasil. Pelo discurso do comandante alviverde, esse casamento, no entanto, parece perto do fim e a tendência seja o retorno do técnico à Europa em caso de um convite interessante. Se isso se concretizar, Abel seguirá sua sina de nunca ser demitido de um clube, mais uma prova de sua competência no que faz por onde quer que passe. E no coração do torcedor palmeirense, terá sempre um espaço para o homem que marcou seu nome no Verdão.